Bezerra da Silva: produto do morro de Letícia C. R. Vianna

capa da obra. Fonte: Internet

O samba é considerado um dos gêneros musicais mais populares da cultura brasileira. A partir da década de 1920, crescia nas periferias do Rio de Janeiro movimentos culturais de origem popular: as batucadas, o lundu, o maxixe e as rodas de samba. Roberto Moura (1995) salienta que todo o que tipo de objeto disponível (pratos, caixas, raladores) era utilizado como instrumento musical.[1] Figuras como Pixinguinha e Noel Rosa fizeram parte deste grupo.

Graduada em Ciências Sociais e mestre em Antropologia Social pela UnB, Letícia Vianna[2] escolheu o tema de sua tese, em 1994, a partir de caminhadas em Copacabana que a fizeram descobrir o prédio em que funcionava uma pensão pertencente à família de Bezerra da Silva:

 “ Pensão Novo Horizonte – sob a direção de Regina Bezerra da Silva. Curiosa, subi e entrei[…] Estava diante de um possível objeto de pesquisa e fui acometida por “vertigens antropológicas” – o estranhamento, o desejo de conhecer o outro, a necessidade de superar o medo do estranho, o desafio de construir vias de acesso teóricas e pessoais ao universo simbólico diferente do meu.”[3]

Para Vilas Boas (2002) “os biógrafos tendem a preferir biografar um indivíduo que ao menos mereça seu respeito e estimule sua capacidade individual de investigação.” [4]. Com o intuito de fazer um estudo sobre a música popular urbana, a biógrafa escolhe Bezerra motivada pelo desejo de compreender a construção dos universos simbólicos das favelas no Rio de Janeiro e do samba.

Para compor a pesquisa, Vianna utilizou três fontes de informação: sambas, relatos gravados e entrevistas em jornais. As gravações eram feitas uma vez por semana e duraram quatro meses. Os depoimentos possuíam de 1h e 30 minutos a 8 horas e os assuntos variavam de acordo com a vontade do sambista: relatos da vida familiar, política, religião, vida na favela, malandragem e etc., mas quando Bezerra não estava “inspirado”[5] ela poderia ficar observando suas ações e até momentos de composição musical.

A narrativa de Vianna é construída em terceira pessoa, entretanto podemos constatar a utilização da primeira pessoa quando é delimitado o objeto de análise. Dividida em seis capítulos que contemplam quatro fases da vida de Bezerra: infância no nordeste, princípio da vida no Rio, os sete anos de extrema pobreza e a vida como sambista de sucesso.

A capa é o primeiro elemento intrigante da obra, pois “Bezerra da Silva, que é negro, aparece descalço, com calça branca, boina branca, camisa listrada de vermelho e branco, com uma arma em cada mão, duas outras na cintura e um cinteiro de munição pendurado no ombro. Ele está crucificado. Por trás deste cristo, em segundo plano, um recorte de uma favela em contraste com o céu.”[6] na extremidade da cruz os dizeres: “trajetória e obra de um sambista que não é santo.” De acordo com a biógrafa, capa do livro foi inspirada na primeira imagem que viu de Bezerra ao entrar na pensão – a capa do disco “Bezerra da Silva – eu não sou santo” de 1990. A imagem do malandro é recorrente no contexto das periferias cariocas e fortemente associada à imagem do sambista.

No segundo capítulo intitulado “O rei do baião: uma outra história”, a biógrafa compara as trajetórias de Bezerra da Silva e Luiz Gonzaga,  ambos nascidos em Pernambuco, deram origem a diversos estilos musicais e figuram como personagens centrais da afirmação do samba e do forró respectivamente, evocando assim, uma identidade coletiva brasileira e também uma identidade regional estigmatizada.

Para a biógrafa, “o forró, como o samba, é a música de massa, e como tal, desafia fronteiras sociais tradicionalmente instituídas em função de um lócus bem definido.”[7] Ao longo do capítulo, Vianna destaca os caminhos percorridos por Luiz Gonzaga década a década, mas não retoma o assunto nos capítulos seguintes. Portanto, questiono a escolha da biógrafa, pois no capítulo cinco “Malandros e bandidos, trabalhadores e manés” é apresentada a origem do samba retratando rapidamente a trajetórias de sambista como: Pixinguinha, Cartola e Noel Rosa.

Nascido no Recife em 1927, José Bezerra da Silva era filho de uma bordadeira e um marinheiro mercante que abandonou sua mãe grávida. Para Bourdieu “O nome próprio é o atestado visível da identidade do seu portador através dos tempos e dos espaços sociais.” [8] Logo, Bezerra da Silva transformaria seu nome em um símbolo do malandro carioca e ao mesmo tempo do nordestino que venceu no Rio de Janeiro.

A música sempre foi a sua maior paixão, em depoimentos revelou o primeiro contato e a relação conflituosa com a família: “Ninguém admitia esse negócio de música, música era coisa de vagabundo. […]eu podia ser tudo, menos músico. Levei uma surra por causa disso.” [9]

Aos 18 anos ingressou na marinha, mas foi expulso e embarcou clandestinamente para o Rio de Janeiro num navio de açúcar. No Rio trabalhou na construção civil, foi morar no Morro do Cantagalo onde viveu por 20 anos, conheceu o samba de partido-alto e o atualizou. Ficou desempregado e durante sete anos morou na rua, logo, tentou o suicídio sendo salvo por um Caboclo.[10] Na música “O preço da glória” o sambista retrata os obstáculos vividos:

 

“Me prenderam várias vezes

porém sem ter nada a dever

morei na rua da amargura

longos anos dormi na sarjeta

e nem assim me revoltei

na universidade do mundo

foi nela que me criei

e como penei.”[11]

A biografia desempenha um papel importante na perpetuação do passado. Criador de sambas biográficos, Bezerra da Silva se definia como “Intérprete dos verdadeiros poetas – cronistas da sociedade: mecânicos, camelôs, policiais e bandidos”[12] se considerando “indigesto” para a elite. A partir dos anos de 1970, suas canções se popularizaram aproximando o morro e do asfalto, lugares simbólicos que demarcam a “condição de classe.” [13] No samba “Partideiro sem nó na garganta” Bezerra destaca as diferenças sociais e sua intenção em transformar o estereótipo do malandro:

“Dizem que sou malandro, cantor de bandido

e até revoltado

porque canto a realidade de um povo faminto e marginalizado”[14]

Segundo Alba Zaluar[15] (1985) as representações que associam o malandro ao bandido fazem parte dois sistemas de socialização que estão presentes nas periferias: o trabalhador e o bandido. Para o trabalhador o bandido é o “atraso”, já para o bandido o trabalhador é o “ otário[16]” que apesar da luta é igualmente excluído.

Em depoimento a biógrafa, Bezerra da Silva deixa claro sua posição e aponta como construiu a fama de bom malandro no Morro do Cantagalo: “Eu vivia brigando, dando tapa, levando tapa pra me defender, por que havia a mentalidade de que a pessoa que trabalhasse era otário. […]Aí um dia chegou um sujeito e disse que eu tinha que dar dinheiro a ele pra poder morar no morro. Eu falei: Tudo bem, mas você não é prefeitura. Ele falou: Sábado estou te esperando.” Aí no sábado dei uma coça nele. Aí a rapaziada ficou me olhando com respeito.”[17]

O bom malandro seduz com as palavras usando suas habilidades para sobreviver, já o malandro vive da exploração e da criminalidade. Bezerra da Silva era visto pela elite como o cantor da miséria e da marginalidade e pelo povo como um representante que tem consciência de sua identidade de favelado como se auto-define na música “Produto do morro”:

“ Sou produto do morro

por isso do morro não fujo nem corro

No morro aprendi a ser gente

nunca fui valente e sim considerado

em qualquer favela que chegar

sou muito festejado

no Cantagalo na linha de frente

naquele ambiente sou considerado.”

O samba como elemento socializador dá voz à classe marginalizada mostrando as tensões entre o individual e o coletivo. Apesar de ter sido preso 21 vezes, a biógrafa argumenta que o sambista “foi explorado no emprego, ameaçado por bandidos e discriminado pela polícia.” [18] Bezerra explica o motivo das prisões: “Vadiagem é artigo, condenação. Eu nunca respondi processo.[…]eles pegavam os pobres […] porque filho de bacana, de rico não vai preso.”[19]Algumas de suas músicas mostravam a descrença na situação política do país: “para tirar meu Brasil dessa baderna só quando morcego doar sangue e o Saci cruzar as pernas.” [20]

Através da articulação de teorias antropológicas, Letícia Vianna propõe a partir do discurso acadêmico uma obra que relaciona diversos elementos que compõem o universo marginalizado da cultura popular. Deste modo, podemos considerar que a trajetória do sambista perpassa pela construção da sociedade brasileira representando o desejo de transformação social. A imagem do malandro ora como personagem tradicional do Rio, ora como representante do mundo da malandragem, acabou sendo reinventada a partir da existência de Bezerra da Silva.

Obras:  VIANNA, Letícia C. R. Bezerra da Silva: produto do morro: trajetória e obra de
um sambista que não é santo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. 165 p.

 

REFERÊNCIAS:

BOAS, Sergio Vilas. Biografias e Biógrafos: jornalismo sobre personagens. São Paulo: Summus, 2002.

BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”. In: AMADO, Janaína & FERREIRA, Marieta

de Moraes. Usos e abusos da história oral. RJ: Fundação Getúlio Vargas, 1996..

VIANNA, Letícia C. R. Bezerra da Silva – produto do morro: trajetória e obra de um sambista que não é santo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

 

[1] Moura, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África. p. 103 IN: VIANNA, Letícia C. R. Bezerra da Silva – produto do morro: trajetória e obra de um sambista que não é santo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998

[2] Doutora em antropologia social pela UFRJ e Pós- Doutora em antropologia social pela UnB

[3] VIANNA, Letícia C. R. Bezerra da Silva – produto do morro: trajetória e obra de um sambista que não é santo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998 p.9

[4] Boas, Sergio Vilas. Biografias e Biógrafos: jornalismo sobre personagens. São Paulo: Summus, 2002. p .18

[5] Termo usado pela biógrafa.

[6] VIANNA, Letícia C. R. Bezerra da Silva – produto do morro: trajetória e obra de um sambista que não é santo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998 p.8

[7] Ibid., p.46

[8]  BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”. In: AMADO, Janaína & FERREIRA, Marieta

de Moraes. Usos e abusos da história oral. RJ: Fundação Getúlio Vargas, 1996, p. 187

[9] Ibid., p.19

[10] Entidade da Umbanda.

[11] Ibid. p.71

[12] VIANNA, Letícia C. R. Bezerra da Silva – produto do morro: trajetória e obra de um sambista que não é santo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998 p.69

[13] Ibid., p.73

[14] Ibid., p.74

[15] Zaluar, Alba. A máquina e a revolta. IN: VIANNA, Letícia C. R. Bezerra da Silva – produto do morro: trajetória e obra de um sambista que não é santo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998 p.83

[16] Termo usado por VIANNA p.83

[17] Ibid. p.23

[18] VIANNA, Letícia C. R. Bezerra da Silva – produto do morro: trajetória e obra de um sambista que não é santo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998 p.23

[19]  Ibid,. p.23

[20] Ibid,. p. 78

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