Coletivo Nega: uma conversa sobre a definição de teatro negro e os desafios da cena contemporânea

Da esquerda para direita em pé: Fernanda Rachel, Sarah Motta, Michele Mafra e Rita RI. Embaixo, da esquerda para direita: Alexandra Melo, Franco e Thuanny Paes. Crédito da foto: Maria Luisa Coura, Jhonny Strider, Olavo Kucker Arantes e Maria Clara.

O Coletivo Nega é um grupo de teatro de Santa Catarina, formado por pessoas negras que neste ano completou dez anos de história. Criado a partir do Programa de Extensão NEGA, coordenado pela professora doutora Fátima Costa de Lima, o coletivo já passou por várias formações e atualmente seu elenco é constituído por: Alexandra Melo, Franco, Fernanda Rachel, Michele Mafra, Rita Roldan, Sarah Motta e Thuanny Paes.

Participaram desta entrevista: Thuanny Paes, Alexandre Melo, Rita Roldan e Sarah Motta, sendo realizada via whatsapp no segundo semestre de 2019 e transcrita como parte da tese de doutorado: Reflexões sobre teatro negro contemporâneo: uma análise de textos teatrais contemporâneos de autoria negra defendida no Programa de Pós-Graduação em Teatro (PPGT) na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) em outubro de 2019.

Além disso, pesquisando sobre o Coletivo Nega encontramos dois trabalhos que se dedicam a falar da trajetória e estética do grupo, são eles: o trabalho de conclusão de curso de Thuanny Paes, intitulado Teatro é Coisa de Preto e Preta Sim! O surgimento do Teatro Negro do Coletivo NEGA em Florianópolis, Santa Catarina (2017) e a dissertação de mestrado de Fernanda Rachel da Silva, intitulada O beijo e o tapa: manifesto e interseccionalidade no teatro negro do Coletivo Nega (2019). 

A seguir, a transcrição da nossa conversa com revisão e atualização feitas para a publicação, tratando sobre a definição de teatro negro e também os desafios da cena teatral brasileira.

Da esquerda para direita em pé: Fernanda Rachel, Sarah Motta, Michele Mafra e Rita RI. Embaixo, da esquerda para direita: Alexandra Melo, Franco e Thuanny Paes. Crédito da foto: Maria Luisa Coura, Jhonny Strider, Olavo Kucker Arantes e Maria Clara.

Primeira Parte: 

Julianna – Como você compreende a categoria teatro negro? Suas obras e dramaturgias podem ser consideradas como teatro negro?

Alexandra – Eu não consigo te entregar uma definição do que é o Teatro Negro, da mesma forma que não consigo dizer o que é o Teatro. Mas tenho como convicção que a presença do corpo preto é essencial para que o Teatro Negro exista,  corpos pretos como protagonista, voz, movimento como tudo! O espaço cênico precisa ser preenchido pela potência preta e suas narrativas. Afinal foi isso que nossos antigos fizeram, abriram espaço. O TEN ampliou as possibilidades cênicas das pessoas pretas, não se resumindo apenas no protagonismo preto. A gente merece e quer tudo, todos os espaços com nossa presença e axé. Seja performance ou teatro, porque isso transforma. A força que é politica que o Teatro Negro tem é imensa .

Sim. Considero tudo o que produzo como teatro negro. Meu corpo em cena, minha dramaturgia (em construção), minha atuação e minha iluminação pensada para nossos corpos.

Então, pensando na palavra teatro, em tudo, enfim, que a gente aprende na universidade e aprende também fora dela enquanto verdade sobre o que é o teatro – grande teatro – a gente pode observar todas as questões que excluem ou estereotipam e são racistas com as pessoas negras, principalmente, porque a história do teatro que a gente aprende no Brasil não é exatamente a história do teatro brasileiro como principal fonte de construção da arte teatral do nosso país, mas sim do teatro europeu que já está implícito que são pessoas brancas falando sobre suas questões e colocando o negro sempre de uma forma estereotipada e no seu lugar de submisso e oprimido na maior parte das produções artísticas que a gente lê como o teatro.

Claro que tem algumas dessas que fogem um pouco da construção teatral branca mas o que é mais enfatizado na universidade, pelo menos enquanto pesquisa teatral e referência teórica é esse teatro que coloca o negro como sujeito secundário. E a gente pode observar isso com o blackface, e toda a representação teatral do negro também observando um pouco do teatro brasileiro toda a construção da personagem negra e os locais que ela ocupa dentro dos dramas burgueses no nosso país e também na questão da comédia de costumes, no teatro de revista, nas expressões mais populares – eu digo populares no sentido de massa, do que chegou até agora na história do teatro brasileiro, do que a gente tem como referência teatral.

Então, eu acredito que o teatro negro vem justamente colocando que as pessoas negras também fazem arte que o teatro vai além do que está posto para a gente. E essa importância da gente falar o teatro negro justamente por tudo que eu falei anteriormente a isso, qual é a primeira imagem, qual é a primeira referência que se diz quando a gente fala do teatro.

A primeira coisa que nos vem à cabeça é o que realmente acontece. Por isso que o teatro negro vem colocando o sujeito negro, sujeita negra, como protagonista da sua vida representando ou performando aquilo que entende como arte da sua vida e também das suas vertentes culturais, trazendo as questões culturais, musicais, dança, corpo, que são ligadas a cultura negra majoritariamente falando de tudo que constrói esse ser humano culturalmente. E daí é um novo tipo de arte, que ainda vem se consolidando por mais que exista desde que eu nem era gente ainda, desde que eu ainda nem era um embrião, que a gente tem aí várias referências para além de Abdias do Nascimento que já provocavam esses questionamentos da arte negra, do teatro negro.  E eu acredito sim que em algumas – não todas – em algumas das minhas produções artísticas são teatro negro, principalmente através do [Coletivo] Nega e também a partir de outras obras artísticas que eu venho participando a partir daí, no caso, Irokô, que é uma obra que a gente vem construindo a partir, na verdade, de uma dramaturgia branca, mas com um elenco negro tentando problematizar essas questões que a dramaturgia coloca. Em um processo de direção agora com Marcinho [Márcio Gonzaga] a gente está falando da Gilka Machado, Solano Trindade que são dois artistas negros do nosso país, com um elenco negro também. Além de outras coisas que a gente tenta fazer na própria universidade enquanto produção artística trazendo esse teatro assim para a cena, para o debate, para a construção e para além da construção um debate sobre ele para a gente entender e aprender realmente o que é esse teatro negro da mesma forma que a gente tem oito ou cinco matérias sobre um teatro branco.

Fernanda Rachel – Teatro negro, para mim, foi o que eu passei a conhecer e a praticar depois que eu passei a ser integrante do Coletivo Nega. Antes eu já tinha feito parte de três grupos de teatro no nordeste onde eu morei, tive inclusive nessa minha trajetória como atriz, na graduação que eu comecei a fazer no nordeste, um diretor que de certa forma visava alguns papéis para mim pelo fato de eu ser negra – não me colocando em papéis estereotipados que historicamente os negros sempre foram colocados no cinema e no teatro, mas ele me colocava em outros tipos de papéis justamente por eu ser negra para quebrar com os estereotipados, mas até então eu nunca entendi a importância disso. Eu achava que ele era só muito querido para mim, meu pensamento não passava disso. Então, eu passei a entender que teatro negro é o que eu faço, é o que a gente tenta desenvolver no Coletivo Nega. Um teatro que fale sobre as questões relacionadas a pessoa negra, a cultura negra, aos problemas relacionados a população negra e também as coisas boas relacionadas à vida de uma pessoa negra. Então, para mim, teatro negro é isso. E eu acho sim que o que a gente faz é teatro negro, teatro performático não é um teatro tradicional. Gosto muito disso, sou suspeita para falar, mas eu realmente passei a conhecer depois de estar fazendo teatro negro com Coletivo Nega. Falar sobre racismo, mostrar através da arte como essa mecânica social funciona sempre colocando a questão da raça como um mecanismo de poder. Eu imagino como se fosse uma grande máquina onde as engrenagens sempre giram conforme o que pessoas poderosas, homens brancos, querem que as coisas aconteçam. E falar de teatro negro é mostrar isso, é falar de mulheres negras também. É tudo isso para mim.

Sarah – Antes de entrar na universidade eu nem sabia que tinha essa vertente de teatro negro, eu via tudo como uma coisa só, teatro, que era uma parada universal. Mas, depois que eu entrei para UDESC [Universidade do Estado de Santa Catarina] eu percebi o quanto faltava falar essencialmente, especificamente, de teatro negro nas escolas e nas universidades, porque não falam disso. Então, eu conheci o teatro negro depois que eu entrei no Coletivo Nega.

Na verdade, não foi quando eu entrei na universidade, porque na universidade não tem matéria específica ainda, vai entrar no currículo de 2020, mas depois que eu entrei no Coletivo eu descobri que existe um teatro político negro que fala sobre as questões raciais, questões de gênero, teatro político.

E eu pesquisei um pouco mais a fundo e descobri que existia o Teatro Experimental do Negro [TEN] do Rio de Janeiro fundado por Abdias do Nascimento e acho que foi aí que eu realmente conheci o que era teatro negro e principalmente o teatro negro engajado – que é um teatro, um espetáculo, uma peça, um texto feito por pessoas negras, só por pessoas negras, pode falar ou não diretamente de questões raciais, mesmo que não fale de questões raciais ainda vai ser teatro negro, porque é feito só por pessoas negras. O teatro negro engajado fala sobre as questões políticas, sobre as questões atuais do negro na sociedade. E é isso que eu entendo por teatro negro. É isso que eu pretendo fazer como atriz sendo uma mulher negra, falar de questões de raça e gênero nos meus trabalhos.

Thuanny – Acredito que o teatro negro esteja em um contexto como o que a pesquisadora e referência Evani Tavares discute na tese dela, que basicamente classifica o teatro negro em três eixos principais que são: a performance negra, o teatro negro que é político e o teatro feito por pessoas negras. Dentro desse contexto entendo que teatro negro é feito por pessoas pretas exclusivamente e sempre. Se um grupo de pessoas negras cria uma performance e que ela não tenha um foco necessariamente na militância explícita ou simbólica, mesmo assim, é teatro negro.

A pluralidade dos corpos pretos em cena é tão complexa que a gente também poderia discutir que até mesmo quando uma pessoa preta dentro de um contexto brasileiro, por exemplo, faz teatro sem interesse de luta, crie novos significados que vão além do nosso “controle poético”. Não é todo dia que assistimos corpos pretos em cena.

O Coletivo NEGA faz teatro negro? Sim. Militante? Também. Todavia, ainda existem muitas outras questões que aos poucos vamos identificando. Vejo teatro negro em diversos elementos da cultura preta, além dos rituais e as questões das religiões de matrizes africanas, as batalhas de RAP, por exemplo, também poderiam se encaixar em um tipo de teatro negro, diferente dos moldes europeus.

Afirmando isso abrimos o olhar para novas discussões onde tiramos a cultura eurocêntrica e a colonização do centro do palco.

Rita – Eu fiquei um tempo pensando para ver o que ia responder, porque é um assunto que parece que é dado para a gente, mas esse conceito e essa posição de teatro negro ela é complexa e está sempre em mutação, principalmente nesse tempo, eu acho que a todo tempo a gente tem que estar se atualizando e ressignificando as coisas, então demorei um tempo e até para responder essa pergunta eu pensei em ouvir os áudios das meninas, as respostas delas que já aconteceu, mas eu vou primeiro responder sem escutar os áudios delas, porque para ver se depois que eu responder eu possa mudar, talvez eu mude de posição ou de ideia, mas a princípio eu estava fazendo uns trabalhos aqui de disciplinas de dramaturgia e foi pedido para a gente ler o texto do Jé Oliveira do Coletivo Negro que se chama movimento número um ou primeiro movimento o silêncio de depois [Movimento Número 1: o silêncio de depois…] eu comecei a ler e não li até o fim, li até a metade o texto, porque enfim, eu estou numa correria da faculdade e não consigo ler nada até o fim eu começo e não termino. E aí pesquisando esse texto  e vendo umas entrevistas no youtube ele [Jé Oliveira] falou uma coisa que acho que vai me ajudar a responder, mas de forma contrária, de posicionamento contrário ao dele.

Tem uma entrevista que ele diz – eu posso mandar depois, eu não lembro exatamente o nome, mas está no youtube – que ele diz “a gente não se diz enquanto teatro negro, porque o teatro branco ele se diz enquanto teatro branco? Então, por que a gente deve ser dizer enquanto teatro negro?” Eu acho que ele falou alguma coisa assim, eu entendi isso, posso estar errada e depois eu mando o link para a gente dar uma olhada. E aí, eu endossei a minha posição de reafirmar como teatro negro. Aí eu vou lá naqueles estudos que a gente fez em 2017 contigo que foi muito enriquecedor para o grupo e até hoje eu lembro e também das aulas de história eu tive contigo, e aí a gente vê daquelas categorias que a Evani Tavares coloca no texto dela – que também não me lembro o texto, mas depois posso passar, não lembro o nome exatamente, estou fazendo esse áudio meio de forma natural, de forma tranquila, como se a gente se eu estivesse conversando com alguém.

E aí, ela [Evani Tavres] fala de três tipos de teatro negro, o teatro que tem arte negra, que traz a cultura negra, então, não necessariamente feita por pessoas negras, mas que explora a cultura que eu diria mais folclórica negra, depois tem o teatro que é feito por pessoas negras e não necessariamente com uma temática engajada sobre a luta racial ou sobre questão de raça e depois ela fala também do teatro negro enquanto negros fazendo e engajado na temática da luta racial.

Dessas categorias eu considero as duas últimas que eu falei agora que são a de teatro feito por pessoas negras mas não necessariamente engajado e o teatro feito para uma luta, engajado, para um questionamento da sociedade um questionamento das relações étnico-raciais e da nossa história do Brasil e no mundo que eu acho que a diáspora africana foi violenta para o mundo inteiro posso estar errada, porque deve ter alguns lugares que não, mas do jeito que a hegemonia imperou no mundo tão violentamente que eu acho que no mundo inteiro ela foi uma diáspora violenta.

E aí eu me questiono e esse teatro feito por negros, mas que não é engajado, acho que todo teatro de certa forma feito por negros ele tem algum resquício de engajado racialmente porque só o fato da pessoa estar em cena ou da pessoa se colocar já é uma resistência, já é uma luta, então, o corpo negro em cena é uma resistência e é da luta, luta por espaços, por ocupação, e que não está descolado da cor da pessoa, da raça que ela carrega. Bom, e outra coisa é, e o teatro negro, para mim, também consiste em… por exemplo, assim, pode ter um grupo de pessoas negras também dirigidas por uma pessoa branca que não pretende questionar ou trazer ou provocar um questionamento na plateia e que as vezes pode não ser categorizado como teatro negro na minha opinião porque essa diretora ou esse diretor branco não permeia esse lugar, acho que com diretores negros seria mais difícil de acontecer, mas deve acontecer também um teatro para agradar branco para agradar playboy – digamos assim como diria Racionais [Mc’s] “fazendo para branco rir”.

Um teatro que reforça ou um teatro que quebra, uma representação ou uma performance que reforça ou que quebre aquilo que já está dado, aquilo que a gente sempre vê nas mídias e sempre vê nas representações de pessoas negras que trabalha com o estereótipo, então para mim é importante que esse teatro negro quebre esses lugares, quebre esses estereótipos racistas. Acredito que onde tenha pessoas negras tanto dirigindo quanto atuando ou em um coletivo eles vão trabalhar para a quebra desses estereótipos ou com um reforço mas com um questionamento então é uma quebra também.

Segunda Parte

Julianna – Como você compreende a relação entre arte teatral e o ativismo negro/militância negra?

Fernanda Rachel – Bom, com relação a isso eu não posso dizer que passei a conhecer com o Coletivo Nega, porque eu tenho memórias da minha primeira peça de teatro que foi no Ensino Médio na escola que eu estudei também no nordeste, em Natal, que faz uma crítica sobre a sociedade brasileira. Foi um texto escrito pelo professor de artes Lúcio Feitosa, ele escreveu um texto chamado USA Brasil, USA seria a sigla dos Estados Unidos – United States of America. Falava sobre essa relação dos países ditos superiores, como os Estados Unidos e um país subdesenvolvido – aquela definição que a gente tem mais antiga que seria o Brasil.

E eu acho que eu já comecei fazendo teatro político, militante, desde sempre, desde que eu comecei a fazer teatro. Acho que eu sempre fui militante. Desde criança eu nunca concordei com algumas coisas e a arte na arte a gente encontra um espaço onde podemos ser militantes, podemos falar de política, podemos criticar e colocar a nossa visão política e atuar em favor de grupos menos favorecidos socialmente, fazendo arte sem ser agressivos às vezes de uma forma direta, você pode ser agressivo às vezes de uma forma indireta, de uma forma bela, você pode colocar os “pingos nos is” de uma forma poética.

Eu acho que a arte é muito importante para o ativismo, ela é essencial, porque se tudo fosse resolvido através do discurso propriamente dito ou através de ações propriamente políticas, não sei se você me entende, sem arte, vamos supor que a arte não existisse e tudo se resolvesse pelos setores que a sociedade já tem, eu acho que as pessoas envolvidas, as pessoas que deveriam ser atingidas por aquele discurso, por aquela discussão, talvez não entendessem da forma como deveria ser entendido.

Resumindo, não sei se estou fazendo muita confusão, a arte eu acho que ela abre a nossa mente para tudo, inclusive para temas voltados para a militância. A arte, ela abre a nossa mente, ela afeta outros campos da nossa inteligência, a nossa inteligência não é só a intelectual, ela é sensorial, é visual, ela é de memória, é bagagem de vida, é sabedoria. Eu acho que a nossa inteligência é forma por tudo isso. E só a arte pode alcançar isso. Só a arte atinge isso, campos que outras coisas não atingem.

Thuanny – Acredito que esta relação é antiga e muito importante, afinal, o ativismo  pode vir de qualquer “lado”.  E pessoalmente acredito que não muitas vezes a relação entre arte e política é inseparável. Toda arte é política, o lance é ver para que lado o que você consome está pendendo. No teatro e dentro do coletivo vida e arte estão unidas e são inseparáveis.

Alexandra – Então, como já dizia [Augusto] Boal, para usar uma frase assim bem clichê, e verdadeira, assim, cada vez mais importante, cada vez com mais sentido principalmente no momento em que a gente vive agora de conjuntura [política] no Brasil e expande para o mundo, “a arte é uma arma e o povo tem que dominá-la”. Então, eu entendo que o teatro , qualquer tipo de arte tem um papel social muito forte que vai para além da decorativa, que vai para além do simples “agradar os olhos”‘ e provocar catarses e muito mais.

Como os gregos já fizeram e ainda assim a gente tem muitos autores gregos que questionavam diversas coisas, principalmente na comédia, mas eu entendo a arte e o ativismo, militância, como uma coisa que caminham juntas. A gente pode pensar que a gente está falando de teatro negro porque existe um teatro hegemônico, então, o teatro negro já vem aí rompendo, já vem aí tirando as pessoas de uma linha a ser seguida de toda uma construção que existe na literatura, nas artes visuais, dentro do teatro, na música, de pessoas específicas falando para pessoas específicas e perpetuando um costume e jeitos e ideologias específicas que sustentam a hegemonia branca cis heterossexual que foi construída desde que eu me entendo por gente que acompanho a história da humanidade e da arte.

Partindo desses pontos, eu acredito que toda a arte que eu faça tem um papel, não um papel panfletário, mas um papel questionador de falar sobre o tempo que a gente vive. Daí vou na Nina Simone, ser artista e não falar do tempo em que vive é um ato contraditório, é mais ou menos isso que ela fala e também é a coisa mais real e óbvia e latente no momento.

Então, quando você se propõe a criar uma peça, uma performance, qualquer expressão artística que você vai apresentar para o outro, que você cria aquilo para o outro não só para você, você tem um papel de militância, você está dizendo algo, você está construindo narrativas, você está reforçando ou não estereótipos, pensamentos, você está construindo pensamentos críticos também, porque o que o outro vê e o que ele entende parte de você. É importante a gente pensar eu faço isso para mim, para agradar a mim mesmo ou estou fazendo arte para o outro? Até mesmo porque o teatro não é um local solitário, não consigo fazer teatro sozinha. Então, eu estou dizendo coisas e o que eu digo?

Eu posso escolher dizer simplesmente algo que todo mundo quer ouvir que vai ser bonitinho e legal, só que vai ter alguém que não vai estar feliz com aquilo que não vai ser legal para ele, então, é mais uma escolha de pessoas, eu escolho falar para você ou falar para você? Eu escolho falar para a hegemonia e continuo a agradar e reforçar essa hegemonia ou eu vou escolher romper com essa hegemonia, vou escolher falar sobre outras coisas que vocês não querem falar que essa hegemonia não quer falar, tem medo de ser falado.

A gente vê tantas vertentes teatrais que sumiram, tantas dramaturgas que nunca foram montadas, porque tinham conteúdos agressivos para essa ordem capitalista que a gente vive que tinham coisas artísticas a dizer muito perigosas e isso tudo através do teatro através da arte. Para mim, não existe uma separação entre arte, militância, ativismo, porque a partir do momento em que eu construo um pensamento eu tenho responsabilidade com aquilo que eu disse que eu fiz entender, mesmo que esse entendimento fuja muitas vezes do meu controle – porque cada um tem uma leitura específica.

Eu acho primordial a gente cuidar muito com o que a gente falar para as pessoas e sempre se possível quero criar coisas e participar de coisas que tenham algo a dizer para além da decoração – do mero decorativo, que não tem nenhum problema em existir, cada um tem sua função, mas, para mim, eu quero uma coisa que me provoque e provoque também as pessoas e que a gente possa também construir alternativas de um mundo diferente de pensamentos diferentes tornando as coisas cada vez mais amplas e realmente transformadoras, acho que o teatro tem o poder de transformação e a gente não pode abrir mão dele jamais.

Rita – Então, na verdade, acredito eu que seja uma forma de otimizar meu tempo e fazer duas coisas que eu gosto de verdade e faço de coração que é militar, na medida da minha possibilidade, do meu alcance e fazer teatro. Eu sei que a pergunta não é essa, mas qualquer coisa que eu escolhesse enquanto formação eu teria a militância junto, eu escolhi teatro e no meu teatro vai ter militância sempre. Essas duas combinações elas tem uma potência gigantesca, porque a militância precisa ser escutada, ela procura escuta e o teatro é aquele negócio “lugar de onde se vê”.

Então é o lugar onde as pessoas vão te ver e te ouvir, gostando ou não. Se tu se [sic] propõe, nem que seja levar para uma sala e fazer um palco e plateia e apresentar, as pessoas vão te ouvir, gostando ou não. Se você vai pra rua as pessoas vão te ouvir gostando ou não.

E a militância é a mesma coisa, elas vão te ouvir gostando ou não. Elas podem levantar e sair, ir embora, xingar, podem adorar, mas aí os dois [teatro e militância] eu acho que eles estão nesse lugar. A gente quer ser escutado, a gente quer ser assistido. Então, acho uma combinação perfeita, quase perfeita, porque nada é perfeito, mas é um ótimo espaço pra poder lutar na arte. Então a gente pode aproveitar isso pra fazer a nossa militância e além do que existe também pra nós atrizes do preta-à-porter – que já estamos também um pouco saturadas – mas a gente sabe que ainda assim pra muito vai ser necessária uma peça como o preta-à-porter – e aí que se encontra uma coisa que precisa ser trabalhada pra nós que é: como que a gente se coloca depois de tanto tempo fazendo a mesma peça sendo que as nossas inquietações, a intensidade, já tem mudado? Por exemplo, o racismo que eu sofro hoje ele já tá muito mais dissipado e mais fácil de lidar, porque eu já venho a algum tempo lidando com isso de maneira explícita.

Então, como que eu enquanto atriz negra, fazendo performance no preta-à-porter, levando a vida real, consigo manter a minha força de vontade de falar naquele mesmo personagem, naquele mesmo registro. Isso é uma coisa que é difícil. Quando a gente está na iminência da vontade de falar, dá vontade de reivindicar, aí o nosso desafio é sempre revigorar essa vontade tanto enquanto técnica teatral como em que discurso a gente quer fazer, ou posição a gente quer tomar. Eu acho uma arma muito forte, muito importante. Todo movimento negro, ou todos os movimentos sociais, tem que ter a parte teatral, porque isso com certeza só fortalece e faz um diálogo forte, dialético com o público, seja aquele público que a gente quer mudar a cabeça quanto aquele público que já tá formado, já tá do nosso lado.

Terceira Parte

Julianna – Quais os desafios de fazer teatro negro?

 

Fernanda Rachel – Bem, acho que eu ainda estou na descoberta desses desafios. Como uma atriz de teatro negro, como uma pessoa envolvida em teatro negro, os desafios são muitos, principalmente com relação ao público, acho que o que mais me incomoda um pouco, mas é algo que faz parte, é que parte do público não entende que o teatro negro é importante que tem um grupo de pessoas negras falando sobre cultura negra, falando sobre o que é ser negro e como é ser negro.

É diferente de ser branco socialmente, sabe? Aí vem aquele discurso: que somos todos iguais, que não precisa, que esse pessoal é exagerado, esse pessoal só quer falar deles, esse pessoal aí acha que ser negro é isso e aquilo cheio de mimimi, o tal do mimimi, é o famoso mimimi. Mas é importante justamente pensando no Preta-à-Porter que é a peça que eu mais me sinto envolvida, porque participei – o impacto que os relatos de pessoas negras causam no público, principalmente no público branco, porque eu já ouvi gente dizer que não sabia, que nunca imaginava que havia uma peça assim, porque eu nunca imaginava que passava esse tipo de coisa, que as pessoas sentiam isso que passavam por tais coisas, tais situações e também de pessoas negras, o impacto de pessoas negras na plateia, pessoas negras que saíram chorando e não voltaram mais, que vieram nos abraçar e se identificaram, que não conseguiam dizer nada e ficaram com raiva, enfim, acho que os desafios são muitos, não dá para listar todos, são grandes e pequenos desafios sabe?

Até os desafios dentro da gente, de se colocar como artista negra, se colocar para o público, vou dar um relato meu como atriz muitas vezes eu me senti nua na frente do público pelo fato de eu estar me colocando como uma atriz negra, é como se eu estivesse colocando ali todos os meus pontos fortes e pontos fracos na frente do público, é como se eu estivesse realmente nua, sem nada, eu sendo eu, algumas vezes me senti assim.

E não existe isso no teatro branco. Por que “ah, o teatro branco!” [risos] O desafio do teatro negro tem que ser político. Mas, eu acho que não tem sabe como o teatro negro não ser político. Só o fato de você se colocar como teatro negro, ele já é político. Por mais que envolva entretenimento, ele sempre vai ser político. Ele sempre vai ter um fundo político. É que não são escancaradamente políticos, como a Evani Tavares classificou aquelas três vertentes tem uns que são escancaradamente políticos, mas acho que no fundo sempre é.

Thuanny – Os desafios de se fazer teatro no Brasil de maneira geral são inúmeros e vão de, por exemplo, viver de arte sem ser herdeiro a conseguir que as pessoas se interessem pelo que você está produzindo. Agora sobreviver de teatro negro…

As coisas mudaram muito nos últimos anos. O Coletivo NEGA demorou muito tempo para começar a realmente desenvolver um trabalho com um núcleo de pessoas interessadas. As pessoas eram convidadas, entravam, vinham dois dias e nunca mais apareciam. Era difícil a entrega mútua para o teatro e a luta que vinha enraizada em participar no NEGA. Nunca bastou a técnica de atuação, e acredito que isso era o menos importante, afinal, arte não é talento. Técnica a gente estuda, aprende; luta também, mas para ambos é necessário interesse, entrega e engajamento.

Há um outro grande desafio que é o de não cair nos estereótipos. Existe  um senso comum entre a branquitude que nos vê como “aquelas pessoas que falam de racismo” e de que só por que fazemos teatro negro e  militante, por exemplo não criamos poética, estética. Por isso é importante que façamos a seguinte pergunta: estamos fazendo teatro para quem? Por que precisa existir teatro negro se somos 54% da população? O Teatro ou teatro brasileiro é feito por quem?

Muitas vezes esbarramos nessas discussões e em pessoas falando: “Ah, você está fazendo uma coisa para o seu povo, mas isso é muito conceitual, isso é para branco de academia ver” ou ao contrário: “Nossa, vocês estão muito ligados a uma militância e aí não estão deixando o trabalho esteticamente interessante”. Acredito que seja possível fazer os dois e isso é um grande desafio, mas me pergunto se o mesmo é cobrado de qualquer grupo de teatro branco. Fica aí o questionamento.

Rita – Eu já respondi um pouquinho na anterior né?! que um deles é manter aquela legitimidade pra si, do que é falado, se acredita nisso, no que está querendo passar, que isso pode ir mudando de pouco a pouco. O desafio é o racismo, a responsabilidade de estar em palco, de ter aquele poder e ter que está o tempo inteiro de peito aberto e forte para lidar com críticas, com afrontamentos reversos, com racistas.

Outras coisas também que acontecem é a nossa fome de representatividade que não se satisfaz apenas por estar presente, apenas por estar ali em palco, mas também a questão dos personagens. Quando a gente tem o nosso grupo, o nosso Coletivo, a gente pode escolher que personagem a gente faz, o que que a gente vai falar, porém quando a gente é contrata, é chamada para outros trabalhos, normalmente são papéis específicos para pessoas negras, no geral, por exemplo, mulheres, aí é só para mulher branca não sobra nada pra gente. Então, a gente normalmente cai em personagens de estereótipo, por causa da nossa estrutura racista, são estereótipos racistas, degradantes.

Esse é um dos desafios. Outro desafio é a coisa básica que é ganhar dinheiro. Não só falar de racismo, mas estar em um lugar onde eu também ganho dinheiro. Tem aquela peça né Ju, aquela famosa que a gente conhece do Branco – cheiro do lírio e do formol, bom são brancos que decidiram falar sobre racismo, mas eles ganharam um lugar num edital que estava voltado para a questão da raça e aí ao invés de chamar um grupo negro chamaram um grupo branco. Pronto, lugar de fala é um lugar de branco.

E a questão do espaço pra falar, do espaço para se apresentar que era de um festival grande, um festival brasileiro, e internacional era o festival se não me engano. E eles ganharam um cachê, uma verba que poderia estar sendo direcionada para um grupo negro. Perdemos um lugar pra um grupo branco, e isso também é um desafio conquistar lugares.

E a outra coisa é fazer teatro e fugir do tema racial também é um baita desafio, quase sempre que um negro vai fazer teatro ele tem que falar do tema racial, porque faz parte da nossa vida, se a gente vai criar e falar da nossa vida a questão racial vai estar presente, porque não é neutro. Também não falar engajadamente é um desafio. Eu não consigo estar em uma cena em alguma participação, seja ela qual for, qual mídia for, e não fazer essa militância mais engajada ou mais direta em ser negra.

Eu lembrei de uma coisa que eu gosto de falar sobre que é a questão  de posicionamento, a partir do momento que você se assume militante é um lugar de não passividade.

É um lugar onde  você vai reivindicar, onde você vai ver uma injustiça e você deve falar, pra mim, pelo menos, você deve falar, deve meter a cara. Isso também depende da coragem, da forma psicológica que você está, tem que se cuidar. Porém, acho que a questão de ser militante é falar pelos outros que não conseguem falar. E fazer justiça sempre que pode, no que você acredita como justiça. E uma delas é quando for participar do trabalho de outras pessoas, onde outras pessoas tem mais poder que você de escrever roteiro, escrever personagem, em questão de produção, quando você não está em um lugar horizontal, também ver essas injustiças em representação de personagem – por exemplo, eu, Rita, vou pegar [uma personagem] mulata gostosa, mulata que eu falo só pra poder entender que é uma personagem da visão do ponto racista hiper-sexualizada, e eu simplesmente fazer sem problematizar nada. Isso eu já não posso, não deveria poder, porque eu luto contra isso, não é porque vão me pagar super bem que eu vou fazer isso passivamente.

Eu posso até fazer, mas eu vou deixar algum recado ali. Que talvez não apareça no filme, mas pelo menos para o diretor ou diretora. Por exemplo, a Thuanny fez uma coisa foi muito legal, que eu agradeço muito ela e parabenizo e uso como referência que foi uma vez que eu fiz uma participação em um TCC da Unisul com uma personagem principal, isso porque a Thuanny falou com o diretor quando ele pediu o teste de elenco. Isso porque quando ele pediu o teste de elenco, ele pediu para um homem negro e uma mulher loira, branca. E aí a Thuanny, não sei de que forma, conseguiu falar com ele e disse “poxa isso daqui é o que mais tem”, porque ele achou que estava sendo diferente por fazer um casal inter-racial, e na verdade a Thuanny falou isso é o que mais tem, porque não põe uma mulher negra e um homem branco, é sempre um homem negro e uma mulher branca. E casal inter-racial é muito comum em novelas, teatro, filmes. Mas casais negros são menos comuns.

E ele podia ter simplesmente não ter ligado, mas ele ouviu e fez, e partir desse poder que ele tinha, e dessa opção que ele tinha, ele escolheu uma menina negra para fazer o papel principal. E eu ganhei um prêmio, que é aquele do fita crepe de ouro da Unisul, dos filmes de TCC da Unisul dos filmes de 2018  ou 2019 não lembro, e a partir desse trabalho outras pessoas já vieram me chamar para outros trabalhos sabe?! Tudo porque a Thuanny falou.

Eu também já fiz algumas interferências, já fiz participação em elenco de apoio, só tinha eu e um menino negro e a gente ia fazer parte de uma cena e nesse lugar da cena a gente ia ficar super apagados, a gente estava quase fora da cena, fora do alcance da câmera e  eu peguei e falei “pow por que que nós dois, os únicos negros temos que ficar aqu?” Aí falei, e o cara já me colocou em cena. É importante a gente se colocar, reivindicar em trabalhos, em sala de aula mesmo aprendi contigo e tu lembra né? a gente sempre falava, sempre se colocava a partir do que a gente luta. E é um desafio, porque tem gente que não vai gostar, você pode até se tornar uma pessoa problemática, “ah não vou chamar aquela menina porque ela sempre reclama”, e aí também é um desafio se colocar da forma que você vai conseguir convencer mais, é uma estratégia né, as vezes você pode estar chorando por dentro, mas tem que falar sorrindo com aquela cara de simpatia, mas o recado tem que ser dado de uma forma ou de outra.

referências citadas:

PAES, Thuanny Bruno Rodrigues. Teatro é coisa de preto e preta sim! O surgimento do teatro negro do Coletivo Nega em Florianópolis, Santa Catarina. Trabalho de conclusão de curso, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2017.

SILVA, Fernanda Rachel da. O beijo e o tapa: manifesto e interseccionalidade no teatro do Coletivo Nega. Dissertação de Mestrado, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2019.

SOUZA, Julianna Rosa de. Reflexões sobre teatro negro contemporâneo: uma análise a partir de textos teatrais contemporâneos de autoria negra. Tese de doutorado, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2019.

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