Aldri Anunciação: práticas teatrais contemporâneas e autoria negra

Na foto, Aldri Anunciação - Créditos: Lucas Fábio - Imagem disponível no site Melanina Digital: https://melaninadigital.com/aldri-anunciacao/

Aldri Anunciação, conforme o Portal Melanina Acentuada, é “dramaturgo, ator, apresentador de TV e bacharel em Teorias Teatrais pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO, 2006) com a monografia final intitulada Dramaturgia Brasileira no Teatro Alemão – Tradução e Encenação. Recebeu a Comenda do Mérito Cultural do Governo do Estado da Bahia em 2014. Foi primeiro lugar no Prêmio Jabuti de Literatura 2013. Desenvolve carreira de ator desde 1996, quando estreou no teatro profissional nos espetáculos O Sonho, de August Strindberg, dirigido pelo mineiro Gabriel Vilela, e Os Negros de Jean Genet, com direção assinada por Carmen Paternostro”. 

Sua peça Namíbia, Não! foi encenada pela primeira vez em 2011 no Teatro Castro Alves (BA), com a direção de Lázara Ramos e contando com a atuação do próprio dramaturgo e de Flávio Bauraqui. A peça recebeu diversos prêmios, como Prêmio Braskem de Teatro da Bahia (2012) e o Prêmio Jabuti de Literatura (2013). 

É criador e coordenador do Festival Melanina Acentuada e do Portal Melanina Digital, que reúne dramaturgias de autoria negra brasileira.

Nesta entrevista feita em 2019, conversei com Aldri Anunciação sobre a definição de teatro negro e os desafios na cena contemporânea.

Julianna – Como você compreende a categoria teatro negro? Suas obras, dramaturgias, podem ser consideradas como teatro negro?

Aldri Anunciação – Vou respondendo muito baseado nas minhas experiências. A conversa que a gente teve lá (Festival Melanina Acentuada, 2018) foi um pouco sobre isso também: o que é o teatro negro. Lembrando que estou falando aqui de uma maneira e de uma forma que não é monolítica e nem absoluta, eu acho que qualquer conceito endurecido ele não funciona muito quando é confrontado com a dinâmica do mundo real, prático. 

Então, vou falar o que é teatro negro lembrando que ele faz parte de uma dinâmica que é a do dia a dia, que essas coisas vão se ajustando. Dentro dessa dinâmica do dia a dia, da prática, da práxis, por exemplo, muito baseado nos textos que eu tenho escrito, nos encontros que eu tenho visto no Festival de Dramaturgias da Melanina Acentuada – eu percebo que hoje, para Aldri – o teatro negro é muito aquela narrativa plasmada em cena que é atravessada por uma subjetividade ou subjetividades negras. E esse atravessamento, para mim, é muito direcionado a essas cabeças idealizadoras da cena, mas especificamente diretores, autores, atores e atrizes. E atores e atrizes quando esses são os pilares da encenação, quando são os idealizadores do projeto. Acho que é bem específico esse lugar do ator e da atriz, quando eles são os idealizadores. No entanto, quando são diretores e autores, e mais especificamente autores, eu acho que esses lugares filtram bastante e transformam de forma bastante contundente uma narrativa teatral em teatro negro. Eu acho que o teatro negro é aquele cujo o objeto da cena, o sujeito da cena, é filtrado por uma apreciação, uma reflexão, uma articulação criadora, por uma encenação, por uma manipulação da cena negra. Se tem uma negritude, se tem uma negrura, manipulando essa construção, se tem uma negrura forjando essa cena, comandando essa cena, se tem uma negrura afetando todo o objeto e sujeito da cena do teatro, esse teatro – para mim – é um teatro negro.  Esse conceito é o que, para mim, está dominando no meu pensamento. Aldri, pensador de teatro. Pode parecer simples essa conceituação: teatro negro é aquele cujo substrato da cena é atravessado por um pensamento negro, seja ele de um diretor, de um autor ou de uma atriz e ator idealizadores da cena – pode parecer simplificar demais o que é o teatro negro, mas não. 

Eu acho que isso é muito complexo, porque os mecanismos que filtram esse objeto e esse sujeito da cena passam pelas metodologias de criação. Qual a metodologia que está sendo utilizada para cada cena em específico. E é isso que torna complexo o teatro negro nesse lugar. Mas em resumo, o teatro negro é aquele teatro cujo substrato é articulado por pensadores, criadores, negros. E aí têm vários exemplos do que é teatro negro aqui no Brasil. Se a gente for partir para a coisa empírica, o fenômeno mesmo da cena, a gente pode pegar os exemplos clássicos: Nelson Rodrigues, é teatro negro ou não é? Dentro desse princípio não. Porque ali tem um objeto e um sujeito negro articulado e plasmado a partir de uma subjetividade branca. 

Não tem nenhum juízo de valor nessa minha fala. Só apenas dizendo que ali tem um substrato que é atravessado pela subjetividade não negra. Então, dentro desse conceito resumido que eu falei, o Anjo Negro não seria teatro negro. O Anjo Negro de Nelson Rodrigues, porque é atravessado por uma subjetividade branca. Estaria em outra classificação. Aí você pega os espetáculos da Grace Passô ou meus, por exemplo, independentes dos sujeitos que estejam na cena, independentes das personagens serem negras ou não negras na cena – para mim, Aldri hoje – todo material de cena produzido por Grace Passô e por Aldri são teatro negro, porque passa por uma subjetividade de pessoas de negritude. Peguei esses dois exemplos para entender, acho que dá para resumir na prática o que seria teatro negro e o que não seria. 

Vou reforçar aqui, qualquer coisa que a Grace escreva é teatro negro, qualquer coisa que o Aldri escreva é teatro negro, qualquer coisa que o Nelson Rodrigues escreva – para mim – não é teatro negro, qualquer coisa que Nelson Rodrigues narre não é teatro negro. 

Julianna – Como você compreende a relação entre arte teatral e o ativismo negro/militância negra?

Aldri Anunciação – Então a relação do fazer teatral com o ativismo negro eu penso que é uma relação muito direta. Eu não sei também os conceitos que se tem usado nas pesquisas, mas assim eu vejo uma diferenciação grande entre ativismo e militância. Eu não saberia agora explicar exatamente e etimologicamente a diferença, mas, para mim, o ativismo – na parte prática – está muito relacionado à atividade, ao movimento – movimento no sentido de deslocamento, ao acionamento dos mecanismos de criação dos negros e negras. O ativismo está muito relacionado neste lugar. E para mim, a militância está para além deste movimento, para além desse acionamento de mecanismos de criação, de construção de cena, de dramaturgização de cena. Para além disso a militância agrega, específica uma temática, um objeto, extremamente e predominantemente político. Considerando que tudo é político. Mas a militância redimensiona isto, esta questão da politização do assunto. 

A politização do substrato criativo é mais importante do que as subjetividades apresentadas. A militância, para mim, tem muito esse lugar. Então, nesse sentido, existe no meu entendimento – a partir das percepções e discussões que eu vejo lá no Melanina Acentuada – vale a pena ressaltar que é sempre a partir destas discussões do Festival Melanina Acentuada ou Melanina Digital – que o ativismo negro tem um lugar e a militância negra tem outro. E aí quando você pensa a construção da cena teatral, como é que eu vejo esta relação? Eu percebo que existem espetáculos teatrais que estão relacionados com um ativismo e outros com a militância. 

Em princípio, na minha cabeça, toda subjetividade negra que se mobiliza para construir uma cena está fazendo um ativismo negro, está ativando um mecanismo, está deslocando pensamentos, até fazendo autorreflexões subjetivas do cidadão negro. Acabei de trabalhar agora com o espetáculo do Fanon que mexe muito na subjetividade do negro e apresenta feridas provocadas pela colonialidade na subjetividade negra – inclusive contemporânea. Aliás, ele é contemporâneo. Foi uma obra feita a partir do (livro) Peles Negras, Máscaras Brancas, eu criei uma fábula a partir da teorização. Você pode até dizer que ele [o espetáculo] não é um teatro de militância porque ele não localiza elementos políticos muito concretos, porém, ele trabalha as feridas provocadas por uma política de colonização. Então, é uma peça muito mais subjetiva do que objetiva nesse lugar. Então, há quem diga dentro desse conceito que o Peles Negra, Máscaras Brancas, o espetáculo de teatro e não a obra de Fanon, talvez seja uma cena teatral de ativismo negro, mas não de militância negra. 

Existem lugares muito próximos e ao mesmo tempo diferenciados. Respondendo a sua pergunta, eu acho que toda ação negra para a cena, ela é ativada, é um ativismo negro seja uma obra que não tenha uma contextualização política muito concreta não deixa de ser um ativismo negro – se você pega essa obra e confronta ela com a realidade do mundo real prático nosso, onde a negrura tem uma significação, onde a negrura é agrega de valores positivos e negativos pelo capital. Se você confronta esses conceitos de negrura, de negritude, com a sociedade – se você pega um espetáculo que não fala nada de política, ele está fazendo ativismo negro. Então, em resumo, não tem saída. Baseado nas discussões lá no Melanina, todo artista negro e negra que está se mobilizando para a construção de uma cena teatral está se inserido em um ativismo negro, em um tipo de ativismo negro: um ativismo negro de militância, um ativismo negro analisando subjetividades, individualidades do negro, num resgate de memória e de culturas antepassadas do negro, num resgate histórico do sofrimento das colonialidades sobre o negro, outros por outro viés, investigando o antepassado negro numa estrutura até pré-colonial, onde não se fala de colonialidade, mas de se fala de possíveis reinados antes do processo de colonização, então assim, por mais que o trabalho ou substrato da cena não esteja ligado diretamente numa política, acaba sendo um ativismo negro. Agora, a militância negra na cena, às vezes não acontece. 

Então, ao mesmo tempo que eu digo que toda atividade negra para a cena se constitui um ativismo negro teatral, a gente pode pensar que nem todo ativismo negro teatral na cena é uma constituição de militância negra no teatro. E aí é uma mesa extensa para a gente discutir sobre isso. Mas, o fato é que eu percebo que existem estas duas instâncias do ativismo negro, que é onde eu percebo que não existe saída – todos nós negros, a partir do momento em que nos mobilizamos, nos deslocamos para a criação da cena, estamos inseridos no ativismo negro; e essa outra vertente que é o ativismo negro na cena de militância, aonde existe um objetivo concreto de constituição política, de uma conscientização, de uma politização da imagem do negro dentro do corpus e do organismo cênico. A gente pode pensar também assim, aquele espetáculo que não é de militância, mas ativa a subjetividade negra, a objetividade política acontece talvez fora da cena, fora da dramaturgia, a partir da recepção e aí pode até constituir uma militância na recepção, na pós-realização do espetáculo. 

O efeito desse espetáculo na sociedade provoca um efeito de militância, mas ele em si na sua constituição basilar e de núcleo de cena não tem. Já por outro lado, tem espetáculos que tem essa politização no seu núcleo dramatúrgico, na sua constituição de situação dramática. É um assunto complexo, tomara que você tenha entendido o que eu estava tentando dizer, mas em resumo, é uma diferenciação entre um ativismo negro cênico e uma militância negra cênica, basicamente foram nestes dois lugares que estava tentando separar o joio do trigo, o ativismo negro na cena teatral e a militância negra na cena teatral. 

São dois componentes que eu percebo que são bem diferentes quando a gente fala de um teatro negro, embora ambos quando são jogados para a recepção tem um efeito político muito forte. E talvez de igual potência. Mas na sua constituição nuclear da cena são bem diferentes, são muito diferentes. Vamos então para a prática agora. Se você pega – já que eu estava falando de Grace [Passô], um espetáculo como Vaga Carne – a gente percebe ali que tem uma construção de uma poética muito singular da Grace, naquela voz que está em busca de um corpo, de uma materialidade corpórea, isso pode ter um lugar metafórico muito forte, tem uma poetização – e aí a gente pensa também o que é essa poetização, essa metaforização da subjetividade negra que é diferente de um espetáculo, vamos pegar aqui um espetáculo que eu diria que é de militância; eu estou colocando o espetáculo da Grace como um espetáculo que não é de militância – dentro desse contexto que eu estava colocando – Vaga Carne não tem essa contextualização de um teatro negro de militância. Porém, se você pega um outro espetáculo, Erê pra toda vida, do Bando de Teatro Olodum, têm uns componentes ali narrativos  que predominantemente a gente pode analisar que é um espetáculo de militância. Existem substratos políticos ali, pensamentos concretos que direcionam o espectador para um entendimento social que fala da mortandade da juventude negra, do genocídio da juventude negra no Brasil, que torna o espetáculo – além de ser um ativismo negro de cena – uma militância negra no espaço cênico. Então a gente pode pensar que esses dois exemplos – pensando no fenômeno da cena – contemplam esses dois lugares: Vaga Carne, como uma manifestação do ativismo negro na cena e Erê do Bando de Teatro Olum, uma manifestação da militância negra na cena. 

Julianna – Você percebe armadilhas ou contradições nesta categoria teatro negro ou se existem armadilhas e contradições no teatro negro contemporâneo?

Aldri Anunciação – Então Julianna, você fala de armadilhas e contradições. Se existe armadilha ou se existe contradição dentro da constituição de um teatro negro que está acontecendo nos dias de hoje, o que a gente diria o teatro negro contemporâneo ao nosso tempo. Eu não sei se vai responder exatamente direcionada a essas duas palavras  armadilhas e contradições, mas eu percebo que o teatro negro contemporâneo – eu falo contemporâneo é o teatro negro do nosso tempo – eu percebo na verdade uma articulação até sábia dele no sentido de ser construído não especificamente para uma população negra enquanto recepção. Tem aparecido uma inteligência do teatro negro, isso a partir da minha percepção – a percepção de Aldri – tem aparecido a constituição do teatro negro nos dias de hoje uma inteligência de compreender a necessidade de ampliação do espectro de público dessas obras. 

O teatro negro tem percebido que o foco em termos de público, público-alvo que é uma palavra que se usa bastante, sobretudo depois dos editais, o público-alvo precisa necessariamente ser amplo para que a comunicação do fenômeno cênico aconteça. A gente pode até utilizar aqueles termos: para que a dialética se processe na recepção, para que o antagonismo de ideias – que é algo positivo para o teatro já que o teatro vive do conflito, eu falo do organismo nuclear da cena, não necessariamente, mas predominantemente ou quase sempre o conflito é um combustível para a cena, o conflito de ideias, o conflito de pensamentos – então, é muito saudável que esse público seja, contenha e traga também esses conflitos. 

Traga também pensamentos antagônicos ao que está sendo proposto na cena. E isso fomenta ainda mais uma – não sei se a palavra é teatralidade, mas talvez uma dramaticidade ao acontecimento da cena. Você ter um público que pensa igual a mim na cena, isto não está errado, mas as chances de gerar uma fagulha positiva, a chance de gerar um debate, a chance de gerar um confronto de pensamento, deslocamento de pensamento se a gente pensar aí nas constituições geográficas, aquelas movimentações de placas tectônicas que provocam abalos sísmicos pegando isso como metáfora, se eu tenho uma plateia que pensa diferente de mim esse abalo sísmico do pensamento pode acontecer e isso é interessante que aconteça. 

Os abalos sísmicos nas ideias absolutas, nos pensamentos monolíticos sobre a nossa sociedade, sobre o que é certo e errado, olha que bacana você abalar sismicamente o que é certo e o que é errado, é o lugar do teatro, ele é provocador. Ele não é o lugar da objetividade plasmada de forma dura. O teatro está aí para subjetivar as coisas, causar abstração das coisas. Então assim, acho que o teatro negro tem percebido esse lugar. Que é positivo a gente ter contradições de pensamento para que isso gere o debate, para que o espetáculo não termine ali naqueles sessenta minutos ou duas horas que seja, que ele não finalize seu acontecimento ali, para que ele no pós-sala de espetáculo reverbere nas pessoas de alguma forma. Então ele tem que ser provocador. 

Eu estou falando de um certo tipo de teatro, e é do teatro negro. Eu acho que essa inteligência o teatro negro contemporâneo dos dias de hoje compreendeu, essa necessidade de ampliar esse espectro de público-alvo que é justamente o público-alvo não negro e o público-alvo negro. Isso eu estou falando a partir da perspectiva do Festival da Melanina Acentuada. Agora certamente nem todas as instâncias estão nesse lugar de ampliação deste público-alvo, independente desse pensamento ou da ideologia que esse público traga. Ainda existe alguns nichos de teatro que buscam os seus, que é um tipo de teatro que trabalha de si para si mesmo. Não está errado, mas existe o que é de si para si mesmo.

Eu produzo algo e procuro um público-alvo que pensa que nem eu. Eu acho até que o teatro não negro talvez esteja caindo um pouco nessa cilada. Esteja caindo nessa contradição, vamos dizer, teatral – se a gente pensa que o teatro é movido por contradições e por conflitos. Esse teatro que não propõe o  conflito, talvez esse teatro não negro que não propõe o conflito ou a reflexão – talvez ele esteja caindo numa contradição. Se você considera o teatro como espaço de debate. E dentro do teatro negro, alguns lugares sim, alguns nichos entram nessa cilada de produzir algo que não promova o debate. 

Produzir algo que ainda articule uma supremacia da ideia ou produzir algo que ainda trabalhe na ideia de preservação obsessiva de um pensamento, que propõe um teatro que não busque uma abertura, uma flexibilização do pensamento no limite de fazer com que as coisas ainda continuem no caminho humanístico ou ainda caminhem próximo da agenda que a negritude brasileira precisa, que é analisar as questões do genocídio da população negra, o racismo – no limite que esses assuntos não percam sua força. Mas, assim, numa constituição mais generalizada da galera que está produzido, sobretudo do Festival Melanina Acentuada que é o meu espaço mais de campo, meu campo de pesquisa, eu diria que noventa por cento não cai nessa contradição. 

É uma turma que tem produzido contemporaneamente, esteticamente, poeticamente, uma cena que propõe realmente uma abertura de pensamento sem deixar de defender as causas, sem deixar de fazer as denúncias. Exemplos, teatro negro que trabalha questões bastante pesadas, quando a gente pensa no sentido social, de forma cômica. O cômico ainda é um gênero muito pouco utilizado pelo teatro negro, mas já vemos, já percebemos alguns materiais que se utilizam da comédia como uma ferramenta que proponha a reflexão. Pode até parecer uma contradição temática, mas não é, como algo que é tão trágico pode parecer cômico? E pode. Eu vi uma turma agora no sul, porque estava trabalhando no sul, Pretagô, acho que vale dar uma olhadinha. Eles organizaram estruturas de cena ocidental do stand up comedy e fizeram um black stand up comedy. Você entra na sala, qual o princípio do stand up comedy? É você rir do início ao fim. Então eu fui em um desses stand up comedy e ri do início ao fim, mas percebi plantações de pensamentos, reflexões, ali seríssimas que foram colocadas estrategicamente pelo viés do cômico aliviando até algumas amarguras do discurso. Mas a forma com que eles articulam não diminui o objeto ou o sujeito da cena que esse é o grande perigo. Alguns grupos foram criticados nesse lugar, como a Companhia Negra de Revista lá no início do século passado, lá em 1920 com De Chocolat foi muito acusada de ter utilizado do cômico, reduzindo a seriedade do assunto. E é algo a se pensar. 

Eu quero rever e reler as peças De Chocolat que foram tão criticadas e tentar identificar se acontecesse isso mesmo. É que eu li uma peça, Tudo Preto o nome da peça, e eu não percebo uma diminuição da seriedade ou da qualidade problemática do assunto que o De Chocolat apresenta. Talvez tenha sido uma recepção da época, uma percepção da época. Nos dias de hoje, eu, Aldri, lendo esse material do início do século passado não percebo essa diminuição, mas como a gente tem que considerar sempre o público da época. Então, voltando para nós, aqui do teatro contemporâneo negro, a gente tem quer perceber se esses desafios, esses riscos que o teatro negro está se colocando – é isso, risco, acho que o teatro negro contemporâneo se coloca bastante em uma zona de risco na medida em que ele foge das ciladas, mas ao mesmo tempo vai em direção a ela no limite de não se perder ao seu assunto. 

Por exemplo, o público-alvo agora deixou de ser o público-alvo negro, é o público-alvo negro e não-negro. E isso é um risco, estar chamando para o confronto, para o embate de ideias se pega uma plateia que pensa diferente de você. Isso não se constituí nenhuma contradição e nenhuma cilada, é um risco que pode ser positivo. Então, como você pode perceber, eu vejo muito menos ciladas e contradições e muito mais riscos estéticos, riscos poéticos, ousadias, chamamento para o embate, para o confronto de pensamento de forma até estrategicamente invisível. Você pode entrar para um teatro negro sem nem perceber que ele é um teatro negro, eu tenho percebido algumas estratégias nesse lugar nos trabalhos de alguns dramaturgos, sobretudo, pela ideia reduzida que a gente tem do que é teatro negro. Muita gente entende o teatro negro como teatro de militância. Então você entra em uma peça que não é o teatro de militância, vai em um stand up comedy, por exemplo, black stand up comedy do Pretagô, é um teatro negro, é um ativismo negro belíssimo. E alguns dos stand up comedy que eu assisti lá ainda poderiam ser inseridos na categorização de teatro negro militante ainda usando o gênero do stand up comedy. 

Então, os riscos e contradições existem sim, eu percebo que eles existem ainda nessas constituições cênicas que ainda buscam um público-alvo negro para um espetáculo de teatro negro, essa é a grande cilada que eu percebo. Mas, não predominantemente em um teatro negro contemporâneo, predominantemente isto não está. Eu não percebo isso, pelo menos nos a partir dos objetos e sujeitos que eu vejo no Festival Melanina. Essa seria a grande cilada. E contradições eu percebo menos ainda. Eu vejo uma cena muito menos contraditória, no sentido que quando eu penso em contradição eu penso em um espetáculo negro que se utilize de elementos segregatórios que o teatro não-negro se utilizaria. Um teatro não-negro seletivo ele conta suas histórias não-negras com pessoas não-negras equipes não-negras, tudo não-negro. Eu ainda tenho percebido que as equipes dos teatros negro contemporâneo, elas não caem nessa contradição de segregar a equipe. Por exemplo, você vê muita gente na equipe técnica – e eu estou falando agora da minha relação com os espetáculos de teatro negro que vão para o Festival Melanina Acentuada – as equipes são muito ecléticas na sua constituição étnica, tem brancos e negros quase sempre. Acho que não vi nenhuma equipe, nesses quase seis anos – cem por cento black, ou seja, então no seu procedimento de mecanismo, de construção da cena, suas equipes de produção técnica ela é ampla. Então, o teatro negro, ele não entra nessa contradição de segregar. Lembro: estou falando da minha experiência nesses seis anos com o Festival Melanina Acentuada. Seria uma contradição ele [teatro negro] falar tanto em segregação e começar a segregar. Seria uma contradição ele falar tanto que não se fala da personagem negra no teatro não-negro e eles começarem também a não falar da personagem não-negra dentro das suas obras. 

Então, o teatro negro fala também da personagem não-negra, eu estou passando agora para a dramaturgia, as escritas quase sempre têm uma personagem não-negra seja como vilã ou não-vilã. Difícil, você não ver essas relações mais amplificadas quando se fala do ser humano. Não sei se eu estou defendendo demais o teatro negro contemporâneo, mas dentro do universo do Melanina Acentuada a gente percebe que essas contradições e essas ciladas, elas são bem minimizadas para não dizer que é cem por cento zerada. Essas ciladas de segregar a equipe, essas ciladas de segregar temas, essas contradições de se utilizar do mecanismo segregatório dentro do seu procedimento de criação, da sua formação de equipe, excluir a branquitude da equipe, isso é muito minimizado pelos menos nos grupos que estão no Melanina Acentuada. 

Eu percebo muito mais o contrário, percebo muito mais uma ousadia de ampliação do seu espectro de público-alvo, é sempre para o público negro e não-negro. Todos os componentes da cena têm uma enunciação que visa esses dois grupos. Eu vejo muito mais, além dessa ousadia, os riscos. O risco de se utilizar de procedimentos de cena completamente ocidentais e europeus mesclados com procedimentos de construção de cena ancestrais africanos com circularidade, com elementos de contos e lendas africanos tudo isso misturado com pensamentos e conceitos europeus de filósofos europeus. Filósofos africanos misturados. É Achille Mbembe misturado com Deleuze. É um entendimento do mundo muito menos monolítico, muito menos segregador. E isso é um risco. Risco estético. Resumindo, eu percebo muito menos contradições, muito menos ciladas, e muito mais ousadias e riscos estéticos na constituição do teatro negro contemporâneo que tem acontecimento atualmente no Brasil, lembrando sempre, a partir das experiências com o Melanina Acentuada desde 2012 até 2018.

Referências citadas:

Biografia retirado site – https://melaninadigital.com/aldri-anunciacao/ 

Sobre o Festival Melanina Acentuada: https://melaninadigital.com/ 

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